A CURIOSIDADE DE JUCA KFOURI
Há alguns dias, em artigo publicado no Lance que só agora me chegou às mãos -- Agora é torcer pelo Santos --, o senhor Juca Kfouri ousou perguntar o seguinte, em voz alta: "Afinal, o que Buenos Aires tem que São Paulo não tem?"
Acabo de mandar o seguinte e-mail ao senhor Kfouri:
Prezado Juca Kfouri:
Dia desses escandalizei-me ao ler um artigo seu intitulado "Agora é torcer pelo Santos". Lá pelas tantas, após falar de tudo e mais um pouco -- do Once Caldas ao Boca x River --, o senhor atirou nas caras perplexas dos leitores uma pergunta absolutamente inacreditável. Li e reli para ver se o senhor não
estava de sacanagem, mas era isso mesmo:
"Afinal, o que Buenos Aires tem que São Paulo não tem?"
O que Buenos Aires tem que São Paulo não tem? Vamos ver por onde eu começo a responder.
Tem História. Tem igrejas que ostentam, nas paredes, marcas de tiros dos combates contra os ingleses em 1808. Tem o cabildo que instituiu o primeiro governo autônomo da América Latina, em 25 de Maio de 1810. Tem a praça onde o povo se reuniu para comemorar o primeiro governo autônomo e onde impôs ao governo militar a libertação do Coronel Perón em 17 de outubro de 1945. Tem, ali do lado, uma catedral onde repousam os restos de um herói da Independência de todo o continente. A 9 de Julho de lá lembra a Independência de um território enorme, não a sedição separatista de uma província.
Tem cultura. Tem ruas e bairros que são descritas em "Sobre héroes y tumbas", e não em "Paulicéia Desvairada" (isso, caro Juca, faz uma diferença monumental). Foi cantada por Gardel, e não pelos Demônios da Garoa. Tem o Teatro Colón, e não uma sala de concertos dentro de uma estação de metrô. Tem El Ateneo, não a Cultura. Tem cineastas que fazem "Nueve Reinas", e não "Cronicamente Inviável". Tem Borges e Cortázar em vez de Mário e Oswald de Andrade, Piazzolla em vez da Leandro de Itaquera, Martha Argerich em vez dos Garotos Podres.
Também tem tudo o que o dinheiro pode comprar, só que eles compram incontestavelmente melhor. Quando tinham bala na agulha, trouxeram simplesmente a primeira filial da Aliança Francesa da história. Trouxeram a única filial da Harrod's de Londres (convenhamos que impressiona mais que o Mappin). Trouxeram o rugby e o pólo, não os bonezinhos da NBA e o hip-hop.
Tem culinária própria. Tem o mui portenho asado de tira, o portenhíssimo bife de chorizo, o portenhérrimo bife de lomo. Tem isso em vez da massa italiana do Bixiga (sic) e dos sushis japoneses da Liberdade. Mas se o assunto é cozinha internacional, desculpe lá, Juca: sou muito mais os
restaurantes branchés de "Palermo Hollywood" que a afetação dos teus Barakahs -- ou sei lá como se chama o estabelecimento de nome indo-persa-paquistanês que é tido e havido, aí no Arraial, como um dos melhores restaurantes do mundo.
Tem o Rio da Prata, não o Tietê. Na beira do rio, tem os parques e ciclovias da Costanera Sur, não o prédio da Microsoft na Berrini. Tem uma grande atriz, a senhora Mirtha Legrand, no lugar que, aí, é da Hebe Camargo. Tem o edifício Kavanagh em vez do Largo do Arouche. Tem a Calle Florida em vez da 25 de Março.
Para terminar, nas colunas esportivas, tem o Fontanarrosa em vez do Juca Kfouri.
Espero que isto sirva, não para satisfazer sua curiosidade, mas ao menos para indicar-lhe por onde começar a instruir-se para que, um dia, o senhor descubra por si próprio por que a sua pergunta é um verdadeiro despautério.
1 de jun. de 2004
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