6 de mai. de 2010

05.05.2010. PACAEMBAZO.



Eu queria estar em São Paulo. Basta essa confissão bizarra para que os senhores tenham uma idéia do meu estado de ânimo desde que, ontem, em terra estrangeira, na casa do inimigo e com tudo contra, o gigantesco, o cósmico, o imortal Clube de Regatas do Flamengo jogou o maior segundo tempo de seus 115 anos de existência e mandou todas as pretensões e todo o amor-próprio corintianos aí para onde residem os projetos megalômanos de quem nunca teve intimidade com a grandeza.

Desculpem a grandiloqüência. Nelson Rodrigues, Deus o tenha, diria que é hora de escrever mal, de ter o mau gosto de um orador de gafieira, de falar em bandeiras drapejando e o caralho a quatro. Não diria “o caralho a quatro”, acho, mas vocês entendem.

Dir-se-á que exagero e que o Flamengo do Zico terá jogado melhores segundos tempos do que este em que Bruno, Leo Moura, David, Angelim, Juan, Maldonado, Rômulo, Willians, Kléberson, Adriano e Vagner Love (e Toró, e Fierro, e cada um de nós) precisaram de escassos cinco minutos para calar a histérica torcida corintiana, e outros 40 de puro sadismo para esticar-lhe o desespero até quase o ponto de ruptura. Podíamos ter feito três, quatro, cinco. Não fizemos: não teria a mesma graça. Não teria a mesma graça matar o jogo aos 20 do segundo tempo e ver a canalha incolor voltar para casa com as insossas bandeirinhas alvinegras enroladas, para quem sabe fazer delas melhor uso, ou invadir o campo e assumir o comportamento delinqüente que nos acostumamos a esperar dela. Bom mesmo era deixá-la acalentar ilusões até o finzinho -- ilusões de ser time grande, de estar à altura da Libertadores, de estar à altura da eternidade --, e até o finzinho mostrarmos em campo, com técnica e valentia superiores, quem é o fodão deste imenso Bairro Peixoto a que chamam Brasil.

Amigos, estou divagando e me desculpo. Junto com a paixão, o entusiasmo e a alegria de ser rubro-negro, tenho também uma imensa ressaca do Jack Daniel’s que tomei para anestesiar minha garganta cansada (cansada de mandar paulista se foder). Hoje não hei de conseguir ligar duas idéias sem parecer idiota. Paciência. Só queria dizer uma coisa: não sei se percebem que o que aconteceu ontem é para sempre, é eterno. É como o Brasil x Itália de 1982, uma chaga aberta no peito que nem o tempo, nem as vitórias, nem os troféus jamais poderão apagar. Em 5 de maio de 2010, o Flamengo impediu, em pleno Pacaembu, e no ano do centenário do Curíntia, a realização do maior sonho dos cem anos de existência infeliz dessa raça. Para eles, é uma ferida pior, muito pior, do que a tarde em que Ademir da Guia e Dudu decretaram os 20 anos de fila para o alvinegrinho do Parque São Jorge.

Diante disso, nada mais tem importância. O Curíntia pode encomendar quantas pesquisas quiser demonstrando empate técnico (empate técnico de 5 milhões) entre as duas torcidas; pode ser penta, hexa, decacampeão brasileiro com os juízes comprados que lhe garantiram seus títulos passados; pode incensar como se semi-deuses fossem os perebas que lá no Parque São Jorge gozam de status de craques (essa sucessão de Biro-Biros e Vladimires e Netos que são, hoje e sempre, a cara do Curíntia); pode comprar pelos proverbiais trinta dinheiros quantos Ronaldos houver, gordos e decadentes e com gostos reprováveis.

Pode fazer tudo isso que, de hoje em diante, pelos séculos dos séculos, sempre que um corintiano vier cantar de galo para o meu lado, eu lembrarei que, na noite de 5 de maio de 2010, no ano do centenário do Curíntia, o Flamengo mandou os delírios de grandeza corintianos para a casa do caralho.

E isso, amigos, não se esquece nem se vinga jamais.

26 de abr. de 2010

RECORDAÇÕES DE OUTRO FLAMENGO x CURÍNTIA

O ano era 1991, e o abominável Sport Club Curíntia Paulista iniciava sua epopéia de não conquistar a Libertadores da América. Houve outra tentativa antes, suponho, em 1977, em razão do vice-campeonato brasileiro de 1976, mas foi a partir de 1991 que a presença do Curíntia no torneio continental se tornou mais freqüente e, por conseguinte, mais gratificante. A partir de 1991, a incolor agremiação interiorana se fodeu de preto e branco em 1995, 1996, 1999, 2000, 2003 e 2006.

E se fodeu em 1991.

Como mandava o regulamento dos bons tempos, os dois (e não mais que dois) representantes brasileiros, Flamengo e Curíntia, caíram no mesmo grupo 3, junto com os uruguaios Nacional e Bella Vista.

O detestável Curíntia vinha de ganhar o campeonato brasileiro em 1990, numa campanha em que seus principais jogadores foram o gordo escroto Neto e o juiz escalado para beneficiá-lo a cada rodada. (Em 4 de outubro de 1990, um juizinho de nome Edson garfou escandalosamente o Flamengo, em pleno Maracanã, num jogo que os do arraial venceram por 2 x 1; nas semi-finais, contra o Bahia, um tal Joaquim foi ainda mais desavergonhado, chegando a apitar lateral quando um atacante tricolor avançava livre pela ponta direita, com a bola uns dois metros para aquém da risca lateral.)

Pois Flamengo e Curíntia voltavam a duelar pela Libertadores da América de 1991. Estreamos com um empate meio chocho, 1 x 1, contra os arraialinos, numa partida disputada em Cuiabá por conta das reformas no Maracanã. Daí em diante o Flamengo empatou com o Bella Vista, em Montevidéu (2 x 2), e ganhou do ainda respeitável Nacional em pleno Centenário (1 x 0). O Curíntia conseguiu dois empatezinhos sem-vergonha contra os mesmos adversários, ambos por 1 x 1, ambos fora de casa.

A 20 de março de 1991, o Mais Querido do Brasil ia ao arraial de São Paulo de Piratininga enfrentar o mais querido da província, no Pacaembu. Do nosso lado estreava o goleiro Gilmar Rinaldi, que formava a defesa com Aílton, Adílson, o becão Rogério (hoje nosso técnico) e Piá; um meio-campo respeitabilíssimo com Charles Guerreiro, o Maestro Júnior e a dupla Marquinhos e Marcelinho; no ataque, Alcindo fazia dupla com o artilheiro Gaúcho, mas houve espaço para que jogassem, no segundo tempo, as jovens promessas Paulo Nunes e Nélio, o mais rubro-negro de todos os atletas rubro-negros.

O Curíntia vinha com a escalação habitual de Ronaldos, Marcelos, Tupãs, Netos e merdas quejandas.

O jogo nem era, em si, tão decisivo, eis que tanto Flamengo como Curíntia voltariam a enfrentar os uruguaios em casa, num torneio em que se classificavam os três primeiros. Mas a neurótica torcida corintiana estava de mau humor e pronunciava ultimatos contra o time: contra o Flamengo, não se admitia outro resultado que não a vitória. O clima no acanhado Pacaembu era tenso, de decisão.

Mas o Flamengo, onde começava a estruturar-se o time pentacampeão de 1992, não tomou conhecimento das neuroses corintianas, e soube, com muita tranqüilidade, transformar em gols (Rogério e Gaúcho) a sua flagrante superioridade sobre a overrated mulambada corintiana. Feito o segundo gol, a mediana torcida do Curíntia perdeu a paciência e fez o que se espera dela: barraco. Começaram a chover garrafas em campo, numa época em que já não se vendia bebida em garrafa em estádio, e logo vieram as ameaças de invasão. O apitador apitou o fim do jogo e deu por vencedor o Flamengo, que voltou para o Rio com os dois pontos.

(Coisa muito parecida com o que se veria, em 2006, quando o River Plate não tomou conhecimento de Tévez & cia. e soube impor-se à paulistada asquerosa em pleno Pacaembu.)

Ambos os times prosseguiram na Copa. O Flamengo bateu o inofensivo Deportivo Táchira nas oitavas (3 x 2 na Venezuela, 5 x 0 no Maraca) e depois acabou eliminado pelo Boca Juniors nas quartas (2 x 1 para nós no Maraca, 3 x 0 para eles na Bombonera, com participação especial do juiz uruguaio Ernesto Filippi). O mesmo Boca eliminara o Curíntia nas oitavas, 3 x 1 em Buenos Aires, 1 x 1 no arraial.

Na quarta-feira Flamengo e Curíntia voltam a encontrar-se, pela primeira vez, pela Libertadores. Hoje quem anda de mau humor com o time somos nós, e com alguma razão. Não pela perda do Torneio Início, sublinhe-se, mas pelo futebol pífio que o time anda apresentando (e, no caso deste cronista, pelas palhaçadas extra-campo protagonizadas por dona Patrícia Amorim, que demitiu Andrade pelas razões erradas e foi de uma burrice atroz no episódio da Taça de Bolinhas).

Apesar de tudo isso, apesar do futebol ruim e da presidenta pior, faço fé na vitória rubro-negra. Acredito que vencemos, porque o elenco precisa dar alguma satisfação à torcida, depois dos tropeços recentes. Desambientado sempre que jogou no estrangeiro, este ano, o Flamengo tem no Curíntia -- freguês doméstico e velho conhecido -- um adversário ideal para demonstrar que não esqueceu o futebol que vinha jogando, desde a arrancada ao Hexa até mais ou menos o Fla-Flu do carioquinha.

E eu cá suspeito que, no Curíntia, a tranqüilidade de quem fez a melhor campanha é apenas aparente. Não ter a Libertadores, para essa corja, é uma capitis diminutio maxima, diante das glórias já alcançadas pelo Santos, o São Paulo e o Palmeiras (e pelo Flamengo, que é tudo o que eles querem ser quando crescerem).

No Maraca lotado, cada corintiano há de se lembrar dessa sua carência. E perceberão que ganhar a Libertadores não é tarefa simples. Não é para qualquer Curíntia.

Vai pra cima deles, Mengo.

16 de mar. de 2010

O PAPELÃO DOS NOSSOS E A HISTERIA DOS RECALCADOS

Há muita viadagenzinha em torno dos dois episódios -- lamentáveis em si, diga-se de início -- envolvendo os rubro-negros Adriano e Vagner Love. Deixemos já assentado que eu não acho a menor graça em ver jogador do meu time confraternizando com bandido, que sou dos que subscrevem a tese de que bandido bom é, se não bandido morto, ao menos bandido preso, sem progressão de regime por bom comportamento e outras benesses que o constituinte canalha de 1988 consagrou, e que, no meu mundo ideal, a vida privada de jogador do Flamengo só seria objeto do noticiário para sabermos exatamente que vagabunda famosa ele anda furando. É deselegante, mas tem o efeito educativo de distinguir bem, aos olhos do público, o atleta do Flamengo de atletas do São Paulo e do Curíntia, mais chegados a ser furados (ou, com muito boa vontade, a furar o que não merece ser furado, no segundo caso).

Deixemos tudo isso assentado para que se não me acuse de estar defendendo o que não defendo. Como cidadão privado, torcedor do Clube de Regatas do Flamengo que sinceramente quer bem aos srs. Adriano Leite Ribeiro e Vagner Silva de Souza, fico triste e envergonhado pelo papelão que nos proporcionaram. E entendo e subscrevo as preocupações dos que acham que esse comportamento pode prejudicar o futebol do Flamengo -- pelo risco de rachar o elenco ou de os excessos comprometerem a boa forma física e mental de nossos atletas.

Dito tudo isso, permito-me voltar ao meu ponto inicial: há muita viadagenzinha em torno dos episódios envolvendo Adriano e Vagner Love. Não por parte de nossa torcida, que, como demonstrei, tem legitimidade para preocupar-se com os efeitos desse comportamento; nem por parte dos que, rubro-negros ou não, assumem o comportamento legítimo de lamentar que figuras públicas, admiradas por crianças e jovens, dêem o mau exemplo que estão dando.

Ultrapassados esses limites, no entanto, tudo o mais que se disse sobre esses dois casos foram manifestações mais ou menos explícitas de ódio e recalque pelo que o Flamengo e o Rio de Janeiro representam. Alguns foram muito mais inábeis (e muito mais engraçados) do que outros. É ler, por exemplo, o desabafo histérico do sr. Marco Aurélio d’Eça (que eu, até então, jamais vira mais gordo), intitulado O Flamengo parece um antro de marginais. Como expliquei, não conheço e nem pretendo conhecer o palpiteiro do site Imirante.com (patrocinado -- uma visita rápida à homepage o revela -- pelo governo da srª. Roseana Sarney), mas os que comentam a coluna dão conta de que se trata de vascaíno militante, como tal com a cabeça inchada desde domingo (ou desde Petkovic em 2001, ou desde Rodrigo Mendes em 1999, ou desde Rondinelli em 1978, de Valido em 1944, desde a inauguração da freguesia em 1923).

Trata-se, como se vê, de um pobre coitado, cujas sandices podem e devem ser relevadas por virem de quem vêm (um palpiteiro de um site absolutamente periférico, e ainda por cima vascaíno) e por estarem tão patentemente inspiradas pelo ódio e pelo recalque. É ler essa bobajada (e.g., “Adriano é um cachaceiro marginal e descontrolado”) e morrer de rir, pelo quanto o Flamengo continua incomodando um ex-rival diminuto a quem nós há muito não damos a menor pelota.

Noutra categoria se enquadra, no entanto, o sr. Reinaldo Azevedo. É inegável que se trata (façamos-lhe essa concessão) de formador de opinião, e de cujas opiniões, no mais das vezes, eu não discordo. Mas é paulista, e diria mais: trata-se do paulista quintessencial, o arquétipo do paulista, quase um Idealtypus -- um sujeito tão babaca que, no ano da Graça de 2010, ainda usa chapéu. Um sujeito tão acostumado a uma visão paulistocêntrica do mundo que é incapaz de enxergar as razões do ressentimento que o país nutre pelo arraial de São Paulo de Piratininga. Não é que discorde delas: ele simplesmente não as enxerga, e quando confrontado com elas sai-se com bobagens do gênero “a participação de São Paulo no PIB caiu na última década” (ignorando o fenômeno do boom das commodities, que aumentou a participação no PIB de estados como Goiás e Mato Grosso, de modo inteiramente alheio à vontade dos sucessivos governos chefiados por paulistas). Um sujeito que se pretende comentarista de política nacional, mas se permitiu ignorar quase por completo o grande assunto político, não diria da semana, mas do semestre, que é o roubo que o Deputado cassado Ibsen Pinheiro pretende perpetrar contra o Rio de Janeiro (Azevedo tratou do tema numa única coluna protocolar, que versava muito mais sobre o choro do Governador Sérgio Cabral do que sobre o assalto a unidade da Federação).

Não sei que preferências futebolísticas tem o sr. Reinaldo Azevedo, mas fico cá com a impressão de que se trata dessas figuras que não sabem quem é a bola, para usar uma imagem de Nelson Rodrigues. E, por se tratar do paulista quintessencial, o desprezo que mostra pelo Flamengo há de ser o desprezo que deve ter pelo Rio de Janeiro, que teima em constituir obstáculo à plena babaquização do Brasil sob a regência ilustrada de São Paulo. E o Flamengo é o Rio de Janeiro por metonímia.

Vejam a enormidade do que diz o sr. Azevedo: ele contesta a afirmação do Dr. Michel Asseff Filho segundo a qual Vagner Love é homem barbado e, portanto, livre para freqüentar o ambiente que bem entender, inclusive a Rocinha; contesta a opinião do advogado de que o Flamengo nada tem com as escolhas pessoais do atleta e opina que o jogador “desfilar em companhia de bandidos [...] é, sim, um problema [...] do Flamengo”.

Não sei que mecanismos lógicos o sr. Azevedo utilizou para chegar a essa conclusão, e a verdade é que já fiz suposições demais sobre o que o motiva neste caso. Fato é que ele não explica, além da platitude habitual segundo a qual é problema do Flamengo porque “o artilheiro do time mais popular do Brasil carrega a força da representação e do exemplo”. Não sei se acha que é problema do Flamengo porque acha que o Flamengo é time de bandido. Há 115 anos carregamos esse destino de ser o time mais popular em todas as camadas da população, dos santos aos bandidos. Mas Reinaldo Azevedo dixit, é problema do Flamengo, sim, e estamos conversados.

Sendo problema nosso, pergunto-me exatamente que medidas o sr. Reinaldo Azevedo pretende que tomemos. Que apliquemos uma multa ao Vagner Love por não cumprir a contento o papel de role model que esperamos dele, apesar de essa obrigação não estar prevista em contrato? Melhor: que rescindamos o contrato por isso? Que juiz trabalhista deste país o sr. Reinaldo Azevedo imagina que nos daria ganho de causa numa ou noutra hipótese, no inevitável processo que se seguiria?

Isso no que diz respeito ao Flamengo. Quanto ao Vagner Love, como bem observou o Dr. Asseff, trata-se de homem barbado capaz de fazer suas próprias escolhas. Ainda não nasceu, acho eu, o delegado ou promotor capaz de indiciá-lo ou processá-lo por gostar da companhia de bandidos armados. Que me conste, a conduta do Vagner Love não se enquadra em tipo penal algum, por mais desgosto que nos cause (e me causa particular desgosto, reitero). O sr. Marco Aurélio D’Eça há de discordar. Do alto de sua sabedoria jurídica, ele a qualifica ligeiramente como “associação para o tráfico”, ignorando que o tipo penal enquadra apenas e tão-somente a conduta nele descrita: “associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34” da Lei nº 11.343 de 2006 (o que, naturalmente, não abrange o ato de andar em companhia de, ou interagir amistosamente com bandidos armados). Mas quem é que dá a menor pelota para o que pensa o sr. Marco Aurélio D’Eça?

Com o sr. Reinaldo Azevedo o negócio é diferente. Justa ou injustamente, dão-se-lhe ouvidos, e, se não me importo com o que ele pensa ou deixa de pensar do Adriano e do Vagner Love, naturalmente não acho a menor graça em vê-lo criticar o Clube de Regatas do Flamengo por algo de que o clube não tem culpa no cartório. Ainda mais por ser paulista. Ainda mais por ser o paulista quintessencial.

Nada disto há de ser interpretado como contemporização minha com o comportamento, que acho reprovável, do Adriano como do Vagner Love. Mas os que bradam histericamente, como parece fazer o sr. Reinaldo Azevedo, por alguma medida drástica do clube contra seus atletas parecem ignorar que jogador de futebol, no Brasil, costuma vir de ambientes os mais difíceis. Que o fato de ganharem fortunas não necessariamente há de alterar, em essência, quem são, de onde vêm e com quem preferem interagir. E que quem pretender administrar futebol, no Brasil, ignorando essas verdades fundamentais estará flertando com o fracasso e a irrelevância. Dois pecados que não estão no DNA do Flamengo.

15 de mar. de 2010

TINHORÃO EDUCATIVO

Esta tarde, enquanto ouvia o Flamengo bater mais uma vez o Vasquinho, eu me perguntava, entre um bocejo e outro, se ainda posso ser relevante. A pergunta, se revela uma modéstia inesperada neste cronista, ao menos tem lá sua razão de ser. Estou, afinal de contas, afastado do Brasil há vários anos, com acesso irregular às cousas do Mais Querido, e neste tempo todo surgiu gente de muito talento para defender as nossas cores nestas trincheiras da Internet.

Mais: meus últimos escritos não trataram propriamente de futebol. Representaram, antes, minha pequena contribuição no que eu julgava ser a batalha mais meritória em que um rubro-negro podia engajar-se, àquela altura: expor às mazelas da administração Kléber Leite e, com isso, fazer a minha parte para ajudar a extirpar da Gávea o maior câncer a acometer o Flamengo, em 115 anos de história.

O fato de, poucos meses depois de chutarmos de lá esse pulha, termos alcançado o mais improvável de nossos títulos prova que alguma razão me assistia. Se minha pequena contribuição ajudou ou não são outros quinhentos. Eu até acho que, pela importância do veículo onde eu escrevia, pelo grande público que atinge, algum bem terá feito. Eram argumentos sólidos que, nas mãos certas, podem ter contribuído para pôr as coisas em perspectiva.

Mas passou-se um ano desde então, o sr. Kléber Leite foi escorraçado para, Deus esteja, nunca mais voltar, o Flamengo é hoje hexacampeão do Brasil e parece ter tomado gosto de se medir com os inimigos que nos convém cultivar: a paulistada ignóbil, a freguesia recalcada de outras comarcas caipiras e, agora sim, os rivais latino-americanos, contra quem ainda temos muitas contas para acertar. Essa retomada da missão histórica do Flamengo parece ser comprovada, com sobras, com o choro do vascaíno que destaco para vosso deleite (ver o comentário n° 5).

Pois muito bem: em um ano as coisas mudaram para muito melhor, e há rubro-negros dos melhores, na Internet, esfregando a nossa grandeza irritante nos cornos da freguesia. Diante disso, tem alguma valia eu continuar a dar meus pitacos?

Pois eu suspeito que tem, pelo seguinte: eu tive a glória de estar no Maracanã na tarde de 6 de dezembro de 2009, e o que eu lá vi me emocionou em mais de um sentido. Não só pelo título que aguardávamos há dezessete anos, mas por tropeçar, a cada passo que dava, em pencas de rubro-negros que tinham menos de dezessete anos. Gente para quem um Júnior pulando feito criança, depois de decretar o Penta, há de ser uma referência quase tão distante quanto é, para mim, a de um Valido febril decretando um tri em cima das costas de um Argemiro.

Fato é que, naquela tarde memorável no Maracanã, eu de repente me senti velho. Nos meses que se seguiram, acompanhei, à distância, os debates que se instalaram sobre o nosso Hexa, e me dei conta de como grande parte dos inimigos também é composta de moleques. Moleques que cresceram sob a influência perniciosa da mídia paulista, que repetem as babaquices que aprenderam com um Milton Neves, um Neto, um Godoy, e que não têm a mais remota idéia de como eram as coisas antes desse hiato de dezessete anos.

E me dei conta de que, se alguma função meus escritos ainda podem ter, há de ser uma função educativa. Educativa para os nossos, que cresceram achando normal aspirar a, no máximo, um carioquinha em cima de Botafogo ou Vasco, e educativa para os outros, que repetem impunemente as bobagens que ouvem dos caipiras ascendidos a formadores de opinião.

Se o Flamengo de fato voltou às grandes ligas, nossa torcida precisa ajustar suas expectativas a essa realidade, abandonar os maus hábitos adquiridos em dezessete anos e ter sempre em vista o tamanho que o Flamengo pode ter. Graças a Deus não estou sozinho nessa empreitada. A bendita faixa que sentenciava que “o Brasileiro é obrigação” bem demonstra que quem viu o Flamengo grande não está disposto a deixar a molecada esquecer.

De modo que estou muito bem acompanhado nesta função de educador. E, se algo de novo eu posso trazer, há de ser uma intransigência incomum ao lidar com quem, hoje, é o nosso maior inimigo: a paulistada recalcada (tricoloucas sobretudo), que passou dezessete anos tripudiando do Flamengo mas, com um título apenas do Mais Querido, volta a encarar-nos com pânico.

Sinal de que toda a auto-estima que construíram, em dezessete anos, não é capaz de resistir ao menor triunfo rubro-negro.