NO MUNDO DA FICÇÃO
Ontem, conversando com meu amigo Gustavo de Almeida, chegamos, ambos, à conclusão de que estamos perdendo tempo demais escrevendo sobre polêmicas inexistentes, sobre questões que só existem nas cabeças desajustadas de uma meia dúzia de casos clínicos. Nos últimos dias, tive de gastar o meu latim pelo menos duas vezes no exercício fastidioso de demonstrar o óbvio: que a torcida do Flamengo é a maior do Brasil e que o Zico não foi “jogador de Maracanã”.
Seria inconcebível, numa sociedade saudável, que senhores atarefados como nós outros tivessem de gastar trinta, quarenta minutos de seu dia emitindo opiniões sobre o óbvio. É como se eu tivesse de parar tudo o que estou fazendo para redigir um artigo demonstrando cabalmente que, acima de zero grau, o gelo derrete, ou que os corpos de maior massa atraem os de menor massa.
Mas um país onde qualquer Alec Duarte pode emitir seus palpites azedos em jornais de grande circulação, onde um sujeitinho ignóbil como Jorge Kajuru fala e as pessoas ouvem, onde se respeitam as opiniões de um pulha do quilate de Milton Neves -- um país assim não pode ser um país sério.
Hoje, eis-me aqui parando tudo o que tinha para fazer para escrever sobre o óbvio de novo. Tudo por conta de outra nulidade, outro zé-ninguém que se fez ouvir e que teve seu arrazoado incongruente publicado pela imprensa de todo o país. Trata-se, desta vez, de um cavalheiro que atende pelo nome de Fred Domingos e que, além da desdita de ser Fred Domingos, ainda padece do infortúnio de ser diretor de futebol do Sport Recife.
Mais uma vez a pretensão absurda do Sport Recife de ser reconhecido como o campeão brasileiro de 1987. Já não há muito o que dizer sobre o assunto. Campeão do Brasil é o time que se sentiu campeão do Brasil ao término de 90 minutos, é o time cuja torcida comemorou sinceramente o título após o apito final. É o time cuja glória foi testemunhada pela torcida brasileira, comemorada pela torcida própria e amaldiçoada pelas torcidas adversárias, diga a CBF o que disser.
Em 1987, esse time foi o Flamengo. Foi -- para usar a fórmula lapidar de Juca Kfouri -- “o melhor de um campeonato entre os melhores”, foi campeão diante de cem mil pessoas, teve sua glória testemunhada por um Franz Beckenbauer (que não sairia de seu hotel debaixo daquele aguaceiro todo para testemunhar um fato intranscendente) e por milhões de telespectadores Brasil afora.
O Sport, por seu turno, jogou um jogo que ninguém viu contra o Guarani, que a Globo não transmitiu, que não provocou um único bocejo do torcedor brasileiro, que nem sabia que àquela altura ainda tinha campeonato em andamento no Brasil (na cabeça do torcedor, a temporada terminou em 13 de dezembro, data da conquista do Flamengo). E, como se tudo isso não fosse demérito suficiente, ainda resolveu dividir o título com essa potência do futebol pátrio que é o Guarani de Campinas.
Mesmo diante de fatos tão límpidos, tão inequívocos, é óbvio que sempre haverá os espíritos-de-porco que se agarrarão a qualquer desculpa esfarrapada para contestar a glória do Flamengo. Não os culpo, eu faria a mesma coisa. E a desculpa esfarrapada que os assiste é o fato de a CBF do impoluto Nabi Abi Chedid ter declarado o Sport campeão do Brasil.
Deixando de lado o fato de essa decisão ter-se pautado por critérios meramente políticos -- a CBF estava desesperada para cortar as asinhas dos grandes clubes do Brasil, que subitamente descobriram que não precisavam dela para nada --, centrando-me tão-somente no mérito da decisão, eis o que posso argumentar em defesa do óbvio: o campeão do Brasil é quem o povo reconhece como tal, e não quem tem seu nome escrito num livrinho empoeirado num arquivo na Rua da Alfândega.
Uma decisão que ignore isso é como a ordem daquele rei do Pequeno Príncipe que determinava ao sol que nascesse a oeste ou que as estrelas deixassem de brilhar. Não é nem inválida, não é nem nula de pleno direito -- é uma decisão inexistente.
Inexistente como as polêmicas que me têm ocupado de uns tempos para cá.
21 de mai. de 2003
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