2 de mai. de 2013

IDENTIDADE E PÉLA-SAQUISMO

O Brasil vive tempos débeis-mentais, e o sujeito que duvide da justeza desta constatação só precisava prestar atenção à histeriazinha que se gerou em torno do jogo entre Barcelona e Bayern de Munique, na última quarta-feira. Por todo o lado, garotos brasileiros tomavam partido de um e de outro, davam gritinhos aviadados por um ou por outro, discutiam nos foros virtuais em defesa de um ou de outro, como se de dois times brasileiros se tratasse. Dir-se-á que gostam de futebol, e que o amante do jogo tinha diante de si os dois melhores times do mundo. Precisamente: o ser humano normal não aprecia, padece o futebol, tolera os noventa minutos do jogo porque ali, com as cores que herdou de seu pai e de seu avô, se disputa algo que vai muito além do mérito esportivo. Fosse pela beleza do jogo, qualquer de nós abriria mão de bom grado de assistir a marmanjos dando botinadas e acompanhava, com muito melhor proveito, o vôlei feminino (sobretudo quando joga a Itália).

A todo o mundo que me venha falar de Messi, Ibrahimovic ou Schweinsteiger, minha resposta sempre foi a mesma: eu não gosto de futebol, meu negócio é Flamengo. Quando muito, padeço jogos alheios apenas para torcer pela desgraça do Vasco, do Fluminense, du Galu e, sobretudo, de  qualquer time paulista que entrar em campo em qualquer lugar do planeta. Mas também aí não me afasto um milímetro de minha essência: para o rubro-negro, torcer contra essa corja também é questão de identidade.

Falo em identidade e chego ao âmago da questão: eu respeito o torcedor do Barcelona que sente arrepios à menção de Kubala ou Rexach, ou que enxerga na camisa blaugrana alguma essência profunda da catalanidade e canta o tots al camp ainda hoje como quem brande a língua pátria como um escudo. Também assim o torcedor do Boca que passa oitenta minutos cantando murgas melancólicas, porque o ritmo, que sobreviveu na Bombonera enquanto definhava nas ruas, é parte de uma certa identidade da zona sul de Buenos Aires, que encontra no Boca a sua melhor expressão. Em contrapartida, há uma década que tenho ímpetos homicidas sempre que ouço a torcida do Grêmio macaqueando não só as murgas, que jamais lhe falarão à alma, mas também o sotaque estrangeiro sem o qual se atropelaria a métrica. E há quatro, cinco anos que tenho vontade de pagar o esporro devido a cada pai de criança que circula por aí com camisetinhas do Barcelona ou do Real Madrid (excetuado, neste último caso, se tiver nas costas o número 7 e o nome Raúl).

E o Flamengo com isso, estará perguntando-se o leitor. Muito simples: nosso clube e nossa torcida também não são imunes a uma época débil-mental. A quem duvida, sugiro procurar a meia dúzia de casos clínicos que, ultimamente, faz de conta que é barra-brava com bombos e pratos na Superior Leste do Engenhão, abafando os gritos legítimos da torcida e torrando os bagos de todo o mundo ao redor. Fora desses casos extremos, reparem nas letras das musiquinhas que se passaram a cantar, de 2007 para cá, com declarações de amor e manifestações de sentimento que são a antítese do modo carioca de torcer (o Júnior, recordem, confessa que ficava arrepiado mesmo quando a torcida cantava, com toda a simplicidade, que eu gosto de você, e com essa declaração estava dito tudo). Não há, senhores, felicidade possível na língua dos outros, e na nossa língua nós sempre comemoramos em samba.

Fiz esse desabafo para chegar ao inacreditável press release da comunicação do clube, datada da última terça-feira. Na nota está tudo errado, da forma à substância. Na substância, avisam ao público incréu que o Flamengo montou um time de futebol americano (!), em parceria com um tal Imperadores (?). Na forma, explicam que os referidos Imperadores, ao fechar com o Flamengo, encerraram a parceria “com outro clube de soccer do Rio de Janeiro” (!!).

Dois comentários me ocorrem, sobre a notícia e a nota infelizes. Em primeiro lugar, e nisso creio contar com o apoio de todos os leitores, soccer de cu é rola. Em segundo lugar, e por aqui me despeço, observo que há limites, ou tem de havê-los, nesse esforço bem vindo de colocar o verdadeiro inimigo ― o abominável Curíntia Paulista ― em seu devido lugar. À custa de suplantar o Curíntia, não se pode querer emulá-lo em tudo, sob o risco de comprometermos a nossa identidade. Já não digo assistir, mas jogar futebol americano, no Brasil, é de uma babaquice tamanha que só se concebe no paulista, e nenhuma instituição desportiva, por seu código genético, está tão bem equipada para expressar essa babaquice quanto o Curíntia Paulista.  O Flamengo tem, sim, de continuar trabalhando no sapatinho para botar a casa em ordem, voltar a ser hegemônico e pôr fim definitivamente a quantas polêmicas absurdas a imprensa do Arraial inventar sobre o tamanho das duas torcidas. Mas só será plenamente exitoso se for fiel a si próprio, se estiver consciente de que o Flamengo é uma bandeira na qual se enxergam e se identificam todos os brasileiros orgulhosos de ser o que são e absolutamente intolerantes com o péla-saquismo.

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