O Brasil vive tempos débeis-mentais, e o sujeito que duvide da
justeza desta constatação só precisava prestar atenção à histeriazinha
que se gerou em torno do jogo entre Barcelona e Bayern de Munique, na
última quarta-feira. Por todo o lado, garotos brasileiros tomavam
partido de um e de outro, davam gritinhos aviadados por um ou por outro,
discutiam nos foros virtuais em defesa de um ou de outro, como se de
dois times brasileiros se tratasse. Dir-se-á que gostam de futebol, e
que o amante do jogo tinha diante de si os dois melhores times do mundo.
Precisamente: o ser humano normal não aprecia, padece o futebol,
tolera os noventa minutos do jogo porque ali, com as cores que herdou
de seu pai e de seu avô, se disputa algo que vai muito além do mérito
esportivo. Fosse pela beleza do jogo, qualquer de nós abriria mão de bom
grado de assistir a marmanjos dando botinadas e acompanhava, com muito
melhor proveito, o vôlei feminino (sobretudo quando joga a Itália).
A todo o mundo que me venha falar de Messi, Ibrahimovic ou
Schweinsteiger, minha resposta sempre foi a mesma: eu não gosto de
futebol, meu negócio é Flamengo. Quando muito, padeço jogos alheios
apenas para torcer pela desgraça do Vasco, do Fluminense, du Galu e,
sobretudo, de qualquer time paulista que entrar em campo em qualquer
lugar do planeta. Mas também aí não me afasto um milímetro de minha
essência: para o rubro-negro, torcer contra essa corja também é questão
de identidade.
Falo em identidade e chego ao âmago da questão: eu respeito o
torcedor do Barcelona que sente arrepios à menção de Kubala ou Rexach,
ou que enxerga na camisa blaugrana alguma essência profunda da catalanidade e canta o tots al camp ainda
hoje como quem brande a língua pátria como um escudo. Também assim o
torcedor do Boca que passa oitenta minutos cantando murgas melancólicas,
porque o ritmo, que sobreviveu na Bombonera enquanto definhava nas
ruas, é parte de uma certa identidade da zona sul de Buenos Aires, que
encontra no Boca a sua melhor expressão. Em contrapartida, há uma década
que tenho ímpetos homicidas sempre que ouço a torcida do Grêmio
macaqueando não só as murgas, que jamais lhe falarão à alma, mas também o sotaque estrangeiro
sem o qual se atropelaria a métrica. E há quatro, cinco anos que tenho
vontade de pagar o esporro devido a cada pai de criança que circula por
aí com camisetinhas do Barcelona ou do Real Madrid (excetuado, neste
último caso, se tiver nas costas o número 7 e o nome Raúl).
E o Flamengo com isso, estará perguntando-se o leitor. Muito simples:
nosso clube e nossa torcida também não são imunes a uma época
débil-mental. A quem duvida, sugiro procurar a meia dúzia de casos clínicos que, ultimamente, faz de conta que é barra-brava com bombos e
pratos na Superior Leste do Engenhão, abafando os gritos legítimos da
torcida e torrando os bagos de todo o mundo ao redor. Fora desses casos
extremos, reparem nas letras das musiquinhas que se passaram a cantar,
de 2007 para cá, com declarações de amor e manifestações de sentimento que
são a antítese do modo carioca de torcer (o Júnior, recordem, confessa
que ficava arrepiado mesmo quando a torcida cantava, com toda a
simplicidade, que eu gosto de você, e com essa declaração estava
dito tudo). Não há, senhores, felicidade possível na língua dos outros, e
na nossa língua nós sempre comemoramos em samba.
Fiz esse desabafo para chegar ao inacreditável press release da comunicação do clube, datada da última terça-feira. Na nota está tudo
errado, da forma à substância. Na substância, avisam ao público incréu
que o Flamengo montou um time de futebol americano (!), em parceria com
um tal Imperadores (?). Na forma, explicam que os referidos Imperadores,
ao fechar com o Flamengo, encerraram a parceria “com outro clube de soccer do Rio de Janeiro” (!!).
Dois comentários me ocorrem, sobre a notícia e a nota infelizes. Em
primeiro lugar, e nisso creio contar com o apoio de todos os leitores, soccer de
cu é rola. Em segundo lugar, e por aqui me despeço, observo que há
limites, ou tem de havê-los, nesse esforço bem vindo de colocar o
verdadeiro inimigo ― o abominável Curíntia Paulista ― em seu devido
lugar. À custa de suplantar o Curíntia, não se pode querer emulá-lo em
tudo, sob o risco de comprometermos a nossa identidade. Já não digo
assistir, mas jogar futebol americano, no Brasil, é de uma
babaquice tamanha que só se concebe no paulista, e nenhuma instituição
desportiva, por seu código genético, está tão bem equipada para
expressar essa babaquice quanto o Curíntia Paulista. O Flamengo
tem, sim, de continuar trabalhando no sapatinho para botar a casa em
ordem, voltar a ser hegemônico e pôr fim definitivamente a quantas
polêmicas absurdas a imprensa do Arraial inventar sobre o tamanho das
duas torcidas. Mas só será plenamente exitoso se for fiel a si próprio,
se estiver consciente de que o Flamengo é uma bandeira na qual se
enxergam e se identificam todos os brasileiros orgulhosos de ser o que
são e absolutamente intolerantes com o péla-saquismo.
2 de mai. de 2013
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